Minhas duas irmãs foram estudar , em Colégio interno, dirigido por Freiras, na cidade de Rio Claro.
E de quando em vez, íamos até lá visitá-las, para levar-lhes materiais, vestimentas e doces caseiros, e nessa ocasião, meus pais me levavam junto com eles.
Era um místico de alegria e tristeza.
Alegria ao iniciarmos viagem. Pegávamos o trem em Lins, seus vagões eram puxados por enorme locomotiva , que era dirigida pelo maquinista e alimentada pelo “foguista” com toros de lenha, cujo vapor a acionava, e os passageiros iam recebendo fagulhas que saiam da chaminé da então chamada “Maria Fumaça”, tocando-a para frente, indo queimar o povo lá atrás. .
Quando chegávamos na Estação Férrea de Bauru, o trem batendo sinos e apitando anunciava a sua chegada, depois havia baldeação, ou seja, adentrávamos outro trem, o elétrico, cuja locomotiva e os demais vagões eram mais rápidos, bonitos e modernos.
Algumas vezes íamos de Lins a Bauru de ônibus, para evitar as fagulhas da “Maria Fumaça”, e em frente à então bonita Estação Ferroviária da “Cidade sem Limites”, havia o “terminal rodoviário”, onde os ônibus que chegavam estacionavam diante de alguns bares e restaurantes, e então íamos, com o meu pai, até as bilheterias comprar as passagens para o trem, depois embarcávamos, no que iria até São Paulo, passando e parando antes em Rio Claro.
Nunca me esqueci, do tempo em que meu pai me levava até o vagão restaurante do trem, sentia-me todo importante, sentado a mesa , pedia um guaraná , e ali tomava, em um copo grande, ou mesmo, na própria garrafa, o saboroso refrigerante , com um canudinho...
O trem elétrico andava bem mais rápido que o outro, e olhando pela janela, via as árvores e os postes correrem também em sentido contrário ao nosso... uma vez até pensei em falar que, iríamos de trem, mas, deveríamos voltar de poste...(Ah! coisa de criança...).
Íamos sempre de primeira classe, em poltronas, com almofadas bem confortáveis , mas, gostava de ir ver os vagões de segunda classe, e até sentar-me em uma de suas poltronas , feitas de palhinha...e de ripas, sem almofadas.
O fiscal do trem vinha picotar as passagens, e minha mãe pedia ao meu pai para que as entregasse a mim, a fim de mostrá-las ao então fiscal.
Passavam, durante o percurso, internamente, no trem, os vendedores de revistas, doces e bebidas, e quase sempre estava querendo eu alguma coisa...só o guaraná, pedia ao meu pai que me levasse até o carro restaurante..,
De vez em quando passava um funcionário de quépe, trajando uma farda marrom ou azul, anunciando a próxima estação ou cidade... JAÚ...e ia passando adiante pelos outros vagões, que do meu, ainda escutava o eco : JAÚ.. Jaú...jaú...
E olhando pela minha janela, ou seja, a janela do meu vagão, via o trem apitar chegando na estação anunciada, onde parava por alguns minutos, a fim que descessem alguns, e subissem outros passageiros, e estes, juntamente conosco, depois, seguiam adiante...
Passadas as horas, novamente o mesmo funcionário voltava anunciando : DOIS CÓRREGOS ....Dois Córregos.... dois córregos...
Ficava em expectativa da chegada da nova estação... o trem parava, novas descidas e subidas de passageiros, entrega de um malote para o chefe da estação ... um outro funcionário passava batendo um martelo nas rodas do trem ... ouvia-se o apito/buzina da locomotiva, e o trem seguia em frente...
Muitos minutos depois, vinha lá o funcionário anunciante : BROTAS...Brotas....brotas....
Era a nova cidade e estação que iríamos chegar , parar e passar, dentro de mais alguns instantes...
Quase a mesma cena se repetia, o trem apitava, chegava, parava, havia a troca de malotes, as marteladas nas rodas, rostos desconhecidos sorriam, olhavam, algumas pessoas embarcavam outras acenavam, desciam e iam embora... o trem voltava a apitar e rompia nova saída , lá íamos nós mais próximos agora de chegarmos ao nosso destino...
Outra cidade e estação em seguida era anunciada : ITIRAPINA ... Itirapina... itirapina...
Lembro-me bem, que certa vez, nesta estação, após o trem parar, dentre outros vendedores externos de revistas, doces, bebidas, flores, etc., veio um rapaz vendendo cestinhas de uvas... uvas rosadas de Jundiaí... em um enorme tabuleiro , cheia delas... presas por um cordão no seu pescoço.
Meu pai me dera uma nota de dez cruzeiros ( uma verdinha, com estampa do Presidente Getúlio Vargas, lembram-se delas ? – Ah! sei que não é do seu tempo... não faz mal... ). A tal cesta me foi oferecida, peguei-a, custava dois cruzeiros... e o moço não tinha troco... o trem iniciava a sua partida, e eu com a cesta de uvas na mão, a boca cheia d’água, querendo prová-las... olhava para o vendedor, para cesta e para o dinheiro... não sabendo o que fazer... o trem andava , o vendedor apressadamente acompanhava pela plataforma dizendo para jogar a cesta ou o dinheiro... o trem empreendia marcha rápida, o rapazola gritava e eu, na incerteza de jogar a cesta ou o dinheiro... mesmo com pena dele... levei a cestinha com as uvas... sem pagar...
Pensei depois, comentando com minha mãe, que pagaria as uvas quando voltássemos...
O trem foi adiante , levando a gente, e o rapaz do tabuleiro de uvas, ficou para trás...
Chupamos as uvas.... deliciosas... rosadas... de Jundiaí... ou de Itirapina.... pensando na cara do rapaz... e em nossa incerteza....
Nossa atenção voltou , quando o funcionário do trem anunciava : RIO CLARO... Rio Claro... rio claro...
A alegria tomava conta de todos nós, estávamos chegando ... iríamos ver minhas irmãs, minha avó. meus tios, tias e primos.....
O trem diminuía a sua marcha ... apitava e começava parar na estação de Rio Claro...
Chegamos... agora era pegar as malas, arrumar uma charrete para levá-las – pois ali em frente a estação havia um bom número delas, que era para transportar malas, pacotes e até os passageiros, além dos carros de praça (táxis) , cujo ponto ficava no outro lado da Rua Hum, em frente da mesma Estação( as vias públicas de Rio Claro , ao vez de nomes de pessoas ou autoridades, eram numeradas, a exemplo de Rua Hum, Dois, Três, Avenida Hum, Dois, Três, etc) .
A casa da minha avó materna ficava na mesma Rua Hum, número : 754, e o trem passava no quintal de sua casa, onde tinha um caramanchão coberto de trepadeiras e flores, contendo no seu interior uma mesa de madeira e bancos, onde nós, eu e meus primos, ocupávamos para tomarmos as refeições , que eram servidas por minhas tias, acompanhadas de saborosos refrescos e lindas histórias... ao lado, fazendo sombra e produzindo frutos, um enorme pé de jambo.
Toda vez que se ouvia um barulho de trem, indo ou vindo de São Paulo, lá corria o menino caipira, trepava no muro e ficava vendo o trem passar....às vezes, uma das máquinas locomotivas, vinha até ali em frente, fazendo manobras de linhas, e parava, ocasião que dava oportunidade para conversar com o maquinista, que aliás era ele, pessoa muito importante para a molecada, e ele dava trela, indagando nomes, batendo breves papos, e, com isso tornando-se nosso ídolo.
Toda vez era um reencontro maravilhoso com os meus parentes em Rio Claro, cidade plana, bonita, cheia de luzes, bicicletas e charretes.
No centro, duas praças, abarrotadas de árvores , contendo enormes canteiros com muitas flores, inúmeros bancos, onde se assentavam jovens e idosos, a fim de sombra e água fresca; de um lado o Zoéga , famosa padaria e confeitaria, dos doces e salgados gostosos, do outro o Cinema e a Rádio Excelsior, onde em frente havia o footing , que era o vai e vem das moças mais lindas ( e também de algumas menos afeiçoadas) da região, perfilando no meio da rua , rodeada de rapazes.
Mais adiante, tínhamos o prédio e a capela da Escola Normal “Puríssimo Coração de Maria”, estabelecimento de ensino onde minhas irmãs estudavam .
A “Cidade Azul” era conhecida, em todo Brasil, não só por ser a terra natal do Deputado Ulisses Guimarães, como, também, a cidade que possuía a Fábrica da renomada cerveja preta “Caracú”, pertencente à tradicional Família Scarpa; os times de futebol : Velo Clube Rioclarense, e o Rio Claro Futebol Clube; os exímios campeões de natação do Ginásio Koelly; a afamada Fábrica de Tecidos da Família Saad; o Horto Florestal “Navarro de Andrade”; e na famosa Avenida Hum, a “Casa Haddad” . de tecidos, pertencente aos meus queridos tios :Zecche, Kamel e Fuad, que, naquele bom tempo, revolucionavam a cidade com promoções e sorteios, e os melhores artigos, pelos menores preços, possuindo enorme circulo de amizade e freguesia, eles também, nos proporcionava momentos inesquecíveis contando fantásticos causos e anedotas, nos ofertando risos e lazeres... hoje, já estão todos, quase todos os meus parentes, para o nosso pranto, no outro lado da vida, ou seja, pertinho de Deus.
Aqui entre nós, quando retornávamos, este era o momento triste, todos choravam e nos despedíamos , como se nunca, nunca mais fôssemos nos ver, assim como não mais vi, nem encontrei , o menino vendedor de uvas rosadas de Jundiaí, na Estação de Itirapina.
Ouvia o homem anunciando ao inverso da nossa ida, as várias cidades e estações... os postes continuavam a correr ao nosso lado e do trem... ...outras faces e rostos desconhecidos perfilavam à nossa frente, na simples e rápida troca de olhares , no vai e vem da vida, no longo caminho onde vou e tu vais...
A mais triste e doce lembrança que sempre surge na minha mente, é quando tomo guaraná , e tristonho passo a recordar o menino todo importante , sentado junto com seu pai, no carro restaurante do trem...
E um gosto esquisito e amargo, vem fazer com que, ao longe, se ouça um melancólico som de um sino, buzina ou apito , fazendo brotar em meus olhos um montão de lágrimas... que descendo pelas minhas faces, venham formar dois trilhos de água , que descem até o meu peito, como se fossem conduzindo um invisível trem, o trem da saudade, que segue rumo ao meu coração....
Milton Hauy